Diagnóstico

Os desafios da saúde municipal no Brasil podem ser organizados de diferentes formas. Escolhemos estruturar nossa análise em três dimensões:

Perfil de mortalidade dos municípios brasileiros

Um exame da política de saúde em torno das principais causas de morbidade e mortalidade da população brasileira

Desafios da gestão de sistemas de saúde

Um esforço para entender as principais vulnerabilidades do sistema no nível da gestão, com o objetivo de construir capacidade para o enfrentamento dos desafios da saúde pública no Brasil

Resiliência a pandemias e outras emergências sanitárias

Uma análise dos méritos e fracassos no enfrentamento da COVID-19 pela gestão municipal. A pandemia da COVID-19, maior emergência sanitária da história do Brasil, nos mostrou a necessidade de ter um sistema resiliente e preparado para enfrentar crises.

Para estruturar esse diagnóstico, realizamos um amplo processo de pesquisa, mapeando a literatura disponível e realizando entrevistas com informantes chave, além da condução de grupos focais com secretários municipais de saúde.

Esperamos que esta análise possibilite uma visão mais holística e integral dos desafios do SUS no nível municipal.

DESAFIOS DA SAÚDE MUNICIPAL

• O Brasil possui, simultaneamente, altos níveis de mortalidade de doenças infecciosas, não comunicáveis e causas externas;

• No Brasil, a atenção básica é pouco resolutiva, resultando no agravamento dos problemas de saúde da população e numa série de óbitos e doenças que poderiam ser prevenidos;

• A pandemia deflagrou a necessidade de construção de capacidade epidemiológica, de resposta rápida nos processos de compras e contratualizações e na capacidade de mobilização da atenção básica nos processos de testagem e rastreamento de contatos.

75,2

anos é a
expectativa de vida dos brasileiros

Entre 1991 e 2007, a quantidade de óbitos infantis devido a doenças respiratórias caiu

80%

Os índices de mortes no trânsito no Brasil subiram para 22,6 mortes por 100 mil habitantes em 2015

Todos ao mesmo tempo:
o desafio da tripla carga de doenças

A expectativa de vida dos brasileiros é de cerca de 75,2 anos, índice baixo, se comparado aos países da OCDE, mas acima da média de países de renda similar. Morremos simultaneamente de todas as causas possíveis: o Brasil caracterizado pela chamada tripla carga de doenças, possuindo ao mesmo tempo índices altos de doenças infecciosas, não-comunicáveis e causas externas.

As especificidades do Brasil

Rache, Nunes & Rocha mostram que embora exista uma transição epidemiológica em andamento, com uma diminuição grande da mortalidade por doenças infecciosas e aumento da mortalidade por doenças crônicas, o caso brasileiro possui suas especificidades.

Primeiro, a mortalidade por causas externas, causada sobretudo por acidentes de trânsito e homicídios, está acima da média dos países da OCDE e da África Subsaariana, e segue aumentando. Segundo, os municípios brasileiros são bastante heterogêneos: enquanto algumas cidades, sobretudo do Norte e Nordeste do país, possuem um perfil epidemiológico caracterizados pelas doenças infecciosas, outros se encontram do outro lado da transição epidemiológica, com uma carga de doenças similar aos países da União Europeia.

Por fim, essas heterogeneidades na carga de doenças tendem a ser maiores em municípios mais pobres e com uma população mais jovem.

UM CONTO DE 3 CIDADES

A heterogeneidade do perfil de mortalidade dos municípios brasileiros nos mostra como diferentes municípios possuem desafios de saúde pública distintos. Em 2017, 80% das mortes em Mococa (SP) foram causadas por doenças crônicas (66 por 10 mil habitantes). Embora o município de Santa Cruz de Purus (AC) tenha tido uma quantidade substancialmente menor que Mococa de óbitos causados por doenças crônicas, (30% das mortes, 11,23 por 10 mil habitantes), a prevalência de doenças infecciosas é ordens de magnitude maior (52% das mortes foram por doenças infecciosas, ou 19,26 por 10 mil habitantes) que o município paulista, que possui apenas 2,2 óbitos por 10 mil habitantes atribuidos às doenças infecciosas. Já Ceará Mirim (RN), possui um perfil epidemiológico totalmente diferente desses dois municípios, como um índice de óbitos por causas externas (21,25 por 10 mil habitantes) 230% maior que Santa Cruz de Porus (AC) (6,42) e 580%  maior  que  Mococa (3,18).

O que determina a carga de doenças brasileira?

Doenças infecciosas

A redução drástica na carga de doenças infecciosas deveu-se, de um lado, a uma série de tendências e políticas que transcendem o escopo das políticas de saúde: aumento dos índices de urbanização, a melhora das condições socioeconômicas e a implementação de uma rede mais robusta de proteção social. Diversas políticas de saúde foram fundamentais para a redução observada. No entanto, restam desafios; em particular as arboviroses: doenças como dengue, Chikungunya e Zika se mantêm em níveis bastante altos.

Redução na carga de doenças infecciosas no Brasil

Entre 1991 e 2007, a quantidade de óbitos infantis devido a doenças respiratórias caiu 80%.

A política de imunizações fez com que enfermidades como pólio, sujeitas à vacinação, diminuíssem drasticamente.

Também houve redução nas mortes provocadas por diarreia, cólera, doença de chagas e HIV.

Doenças não-comunicáveis

Em 2007, 72% dos óbitos brasileiros ocorreram em função de doenças não-comunicáveis. Embora este seja o principal componente da carga de doenças brasileira, houve uma diminuição das taxas de mortalidade ajustadas por idade. Em particular, entre 1996 e 2007, houve uma grande diminuição dos óbitos por doenças cardiovasculares e respiratórias, sobretudo devido à drástica redução do tabagismo e à ampliação da atenção primária. Entretanto, o Brasil enfrenta grandes desafios nos principais fatores de risco das doenças crônicas, com um aumento nas taxas de sobrepeso e obesidade (de 36% entre homens em 1990, para 56,8% em 2015).

 

Causas externas

O último item da carga de doenças, as causas externas, é uma especificidade latino-americana e brasileira, com poucos países no resto do mundo com índices tão altos.  Os índices de mortes no trânsito no Brasil subiram de 15,9 em 2000 para 22,6 mortes por 100 mil habitantes em 2015. Já os índices de homicídios, subiram de 27,35 em 2000 para 31,59 mortes por mil habitantes em 2017.

As mortes por causas externas incidem de maneira heterogênea sobre a população: os homicídios estão em geral concentrados em homens (92%), pardos e negros (50,7%) e jovens (40,3% entre 20 e 29 anos).

o que causa a maioria das mortes?

Gráfico produzido pelo Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), 2017.

Ao menos

40%

das internações nas regiões norte e nordeste derivam de condições sensíveis à atenção básica

A produtividade da força de trabalho da saúde nos municípios brasileiros é bastante heterogênea, variando entre

12% e

100%

de sua produtividade potencial.

Administramos mal recursos já escassos: os desafios da gestão municipal da saúde

A resolutividade da atenção básica continua sendo um desafio para a maioria dos municípios brasileiros. O sistema também sofre com déficits de profissionais e baixa produtividade dos recursos humanos da saúde. Falta uma rotina constante de diagnóstico e planejamento, com melhor uso de dados, e uma gestão mais eficiente dos contratos. As políticas de saúde sofrem ainda com baixa intersetorialidade entre secretarias e pouca integração entre níveis federativos.

Nosso diagnóstico aponta de forma mais detalhada como esses desafios se apresentam para a gestão municipal.

Falta resolutividade à atenção básica

Na maior parte dos municípios brasileiros, a atenção primária à saúde é pouco resolutiva. Se nas últimas décadas avançamos em termos de cobertura (64% em 2016), a resolutividade da atenção básica continua sendo um desafio para a maioria dos municípios brasileiros. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, cerca de 40% das internações são de condições sensíveis à atenção básica. Essa falta de resolutividade causa problemas para o sistema e para a saúde da população, como maior agudização dos quadros de doenças crônicas e  sobrecarga dos níveis de média e alta complexidade, tornando o sistema mais caro e menos eficiente.

Existem diversas razões para os baixos níveis de resolutividade:

1. Ausência de padronização nos fluxos de acolhimento, atendimento e protocolos influencia de maneira determinante a qualidade do cuidado.

2. Mesmo quando protocolos existem, há baixa aderência a estes por parte das equipes que trabalham na APS.

3. Há uma grande assimetria entre o fluxo do cuidado de cada nível de atenção e o usuário do SUS.

Déficit de profissionais e baixa produtividade dos recursos humanos

Para além dos desafios de resolutividade, o sistema conta com déficits de profissionais e baixa produtividade dos recursos humanos da saúde. Se o Brasil apresenta uma média razoável de profissionais de saúde por mil habitantes (2,18 médicos, semelhante a Coreia do Sul, México e Japão), este número cai substancialmente no Nordeste (1,41) e nas cidades de até 5 mil habitantes (0,3).

Para além da ausência de profissionais, a produtividade da força de trabalho da saúde nos municípios brasileiros é bastante heterogênea, variando entre 12% e 100% de sua produtividade potencial.

O amplo gradiente de produtividade é explicado por diversas razões:

1. Do lado do desenvolvimento profissional, os programas de formação permanente são incipientes, enquanto a formação inicial está desalinhada às necessidades da atenção básica.

2. Há problemas no escopo de atividades de cada categoria profissional, pouco definido para os Agentes Comunitários de Saúde, e restrito para os profissionais da enfermagem, que poderiam ter mais protagonismo no sistema.

3. Há ainda fatores que estão diretamente no controle dos municípios,
como os modelos de remuneração, a sobreposição de funções gerenciais
e de assistência e a alta rotatividade dos profissionais da saúde.

Se o Brasil apresenta uma média razoável de profissionais de saúde por mil habitantes (2,18 médicos, semelhante a Coreia do Sul, México e Japão), este número cai substancialmente no Nordeste (1,41) e nas cidades de até 5 mil habitantes (0,3).

Ausência de rotina constante de diagnóstico e planejamento

No nível da alta gestão e na ponta, há o desafio de criar uma rotina constante de diagnóstico e planejamento. Os problemas de saúde são por natureza complexo e mutáveis. O problema começa na disponibilidade e integração das informações. Os processos de coleta de dados são heterogêneos e pouco confiáveis. A coleta de dados compete com as atividades assistenciais, e as informações não retornam à ponta para apoiar o trabalho do dia a dia. Mesmo as informações disponíveis, são subutilizadas, seja pela falta de competências de processamento e análise de dados, seja por uma cultura organizacional que não baseia os processos de planejamento nos dados disponíveis. Esta dimensão de cultura burocrática, por sua vez, também esconde um gargalo de capacitação: via de regra, os administradores da saúde, tanto na alta gestão como na ponta  não possuem treinamento em monitoramento e avaliação e acompanhamento de projetos. Por fim, os espaços de participação, que deveriam gerar incentivos para o desempenho através do controle social, são muitas vezes subutilizados e sujeitos à captura política.

Ineficiência na gestão de contratos

Secretarias de saúde executam, seja diretamente prestando serviços seja por meio da contratualização de provedores, uma parte importante do orçamento municipal. Nesse sentido, realizar uma gestão eficiente de inúmeros contratos é condição necessária para um bom uso dos recursos alocados na área.

As secretarias de saúde enfrentam uma gama de desafios na gestão de contratos:

1. Os setores de compras são pouco transparentes, sujeitos à captura por fornecedores e há pouca concorrência.

2. Os quadros municipais não têm qualificação específica para lidar com contratualizações (não se desenvolveu a capacidade reguladora dessa burocracia).

3. Indicadores e metas, quando presentes, não são aplicados para a gestão efetiva desses contratos.

4. Os processos de compras sofrem com a ausência de uma definição clara nas carteiras de medicamentos e serviços assistenciais oferecidos pelos municípios.

Baixa intersetorialidade e integração entre níveis federativos

A baixa intersetorialidade (entre secretarias) e integração entre níveis federativos e de atenção na elaboração e implementação de política de saúde em nível local pioram a qualidade do serviço. A governança do sistema de saúde é particularmente complexa: agentes de diferentes pastas programáticas e níveis de governo precisam funcionar em coordenação e sintonia. Os processos de referência e contrarreferência ocorrem em nível regional e e entre estados e municípios. O mundo social que determina resultados de saúde é objeto simultâneo – entre outras – da saúde, da assistência social e da educação. Quando estas pastas não agem conjuntamente, os resultados de saúde da população tornam-se algo parecido com uma orquestra onde os músicos tocam partituras diferentes.

No nível da alta gestão e na ponta, há o desafio de criar uma rotina constante de diagnóstico e planejamento baseado nos dados da rede

Dificuldades de acesso dos usuários

Por fim, sob a ótica do usuário, os desafios são inúmeros. O sistema sofre de enormes filas para exames diagnósticos e procedimentos que estão fora do escopo da atenção primária, o sistema não está pronto para realizar o manejo de doenças crônicas, falta humanização no atendimento e existem barreiras de acesso geradas por preconceitos e estigmas contra algumas populações específicas. O controle e participação social, possíveis canais para a melhora de qualidade muitas vezes não são ocupados, e quando existem, ficam presos em dinâmicas políticas locais.

A pandemia da COVID-19 testou a resiliência dos sistemas de saúde municipais e deu visibilidade para os principais desafios dos sistemas no manejo de crises.

66%

da força de trabalho da saúde no Brasil apresentava fatores de risco

A maioria dos municípios brasileiros não tiveram acesso a um epidemiologista que pudesse apoiar a estratégia local de combate a Covid.

Resiliência a pandemias
e outras emergências sanitárias

A pandemia da COVID-19 testou a resiliência dos sistemas de saúde municipais e deu visibilidade para os principais desafios dos sistemas no manejo de crises. Do lado da assistência, as secretarias tiveram dificuldades em criar um fluxo assistencial eficiente na atenção básica para responder a esta contingência. Para além disso, a rede de muitos municípios ficou sobrecarregada, e serviços essenciais como as consultas pré natais e as consultas de  manejo das doenças crônicas foram interrompidos, potencialmente causando um aumento na mortalidade materna e infantil e na agudização de doenças crônicas. Um legado no nível assistencial foi a pronta regulamentação da tele triagem e da telemedicina, ferramentas que no longo prazo aumentarão o acesso à atenção básica.

O obstáculo da escassez de recursos

A resposta da atenção básica à pandemia da Covid-19 foi dificultada pela escassez de recursos disponíveis e pelos desafios organizacionais que dão morosidade aos processos de compras e aquisições. Do lado dos recursos humanos, uma força de trabalho envelhecida e com alta prevalência de fatores de risco (37% entre os profissionais até 60 anos, e 66% para os profissionais acima dos 60 anos) limitou a quantidade de profissionais que podiam atuar na linha de frente. Do lado dos recursos físicos, a falta de equipamentos de proteção individual, de infraestrutura hospitalar como leitos de UTI e respiradores, e de testes e capacidade de processamento.

Dificuldades de governança e comunicação

A resposta a crise também esbarrou em desafios de governança. Se a maioria dos municípios brasileiros criou gabinetes de crise, boa parte destes não se constituíram enquanto fóruns de tomada de decisão e liderança. Muitos gabinetes não tiveram uma cadeia de comando e controle clara, e terminaram sendo espaços onde os conflitos políticos se sobrepuseram aos desafios técnicos e sanitários.

As prefeituras também tiveram bastante dificuldade em se comunicar com a população e garantir o cumprimento das medidas de distanciamento social.  uma crise dessas só pode ser enfrentada se a população mudar seus comportamentos. Muitas secretarias não conseguiram ganhar a confiança da população nem garantir sua aderência a ações importantes para o enfrentamento da pandemia. Faltou um olhar tático para como criar uma comunicação que leve em conta as idiossincrasias culturais de cada território.

Se a maioria dos municípios brasileiros criou gabinetes de crise, boa parte destes não se constituíram enquanto fóruns de tomada de decisão e liderança.

Dificuldades de acesso dos usuários

Os maiores desafios da crise estão na capacidade epidemiológica. A maioria dos municípios brasileiros não teve acesso a um epidemiologista que pudesse apoiar a estratégia local de combate a Covid. Tal fato gerou uma série de gargalos nas estratégias de testagem e rastreamento de casos e contatos no nível local. Os municípios também tiveram dificuldades na implementação de uma estratégia clara que baseasse as decisões políticas de abertura e fechamento de atividades no acompanhamento de métricas sanitárias.